20 de novembro de 2018

Cenas e acenos




(Registros afetivos de uma troca que foi curta, mas que marca um momento de encontro entre duas amigas, uma que iniciava um processo de análise e outra dando-se a ver com as primeiras impressões das leituras de Lacan. Rastros de percursos... Que bom achá-los nas gavetas do tempo.)



    Querida,

   Tenho um pouco de ferrugem na ponta dos dedos, pois da escrita ando distante e não é de hoje... Mas, me inspira retomar esse gosto, pela troca potente que me trazes ao cotidiano, e que, acredito, trata-se de outra estética e de outro exercício a cumplicidade silenciosa do encontro escrito. Então, rapidamente tu perceberás que objetividade não é meu forte e que, sim, quando me proponho a escrever, peço um tempo ao controle e às amarras. Quero dizer com isso, que aposto em uma associação mais livre, porque gosto de me sentir liberta nessa tessitura de letras, sentidos, significados e é claro, significantes.

    Li o teu e-mail, os anteriores também, e fiquei um tanto perplexa pela organização das ideias e clareza daquilo que tens vivido e sentido, e nesse sentido concordo que a análise pode se dar a partir de diferentes formas de elaboração. Esquecer ou lembrar não precisam medir forças. Eu fiquei te imaginando na poltrona e achei graça, acho que quiseste ver a reação do Sr. X, mas, amiga, é bem assim, tu sabes, eles nos torturam... Se ele acenasse, ficaria sem a mão para sempre. É que nem sempre o aceno é do jeito que a gente quer, mas está lá. Deve ser por isso que eu imagino a analista do Cláudio (do Diário de um analisando em Paris) com as mãos do Horácio (da Turma da Mônica). 

    Fiquei pensando na reflexão que ele te propôs sobre o paralelo entre as duas moças as quais te referes. Veio-me a palavra "corte", e a palavra "bundona", que, confesso, foi a parte que mais gostei... Relembrei um universo inteiro de coisas que já senti, já vivi e já falei, mas, ao mesmo tempo, sei lá... Bundona! (se me permites...) Tudo aquilo sem movimentos proporcionais? Da tua parte, achei claro e sincero, como tenho achado muitas coisas que tens expressado. Algumas histórias são como nascem para ser... Em outras, talvez consigamos maior autoria no roteiro.

    Quando falei em associação livre lá no início, é porque prefiro prestar atenção nas palavras que me pegam, e partir daí... (não por acaso Lacan). Contraditoriamente, ao ler sobre tua posição em relação a elas me veio uma ideia de finalização, de corte mesmo, e logo após, me dei conta de que o corte abre, jorra... Seja sangue, sejam ideias, e bem, também ajuda a dissipar ideais, no caso, por exemplo, de uma análise. Quanto aos ideais dos outros em relação a nós, eles não são nossos, embora nos ofereçam de bandeja a todo instante, mas lembremos de que também fazemos isto, pois precisamos das ilusões; é força motriz da vida, acreditar e acreditar... Para isso, imaginar algo. Nesse ponto, quem faz uma boa análise não deixa de construir com aquilo que sobra do ideal, quando ainda faz sentido, é claro. A psicanálise é casada com o possível, a gente é que sempre quer mais.

    Querida, paro por aqui, apostando naquilo que não planejei escrever, mas na fluidez do pensar, e talvez na próxima consiga relatar um pouco de minha análise também, que não anda muito colorida; acho que me encontro na estação “Desconstrução”. Achei que o trem já tinha partido, mas vai se demorar mais um pouco por lá. Que seja assim.

    Eu fui para a poltrona e fiquei, mas não olho muito para o Sr. Y. Converso horrores com os quadros e fotos dele de Paris... Será uma boa explicação para tanta fixação pela bela?

                                                                        Bonsoir!
Carinho, Shei.

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