(O Quebra-cabeça - Filme 2018)
Assisti ao trailer do
filme 30 minutos antes de começar a sessão. Tomada pelo ímpeto e entusiasmo de
alguém que encaixa a última peça de um “Quebra-cabeça” (título do filme), saio
correndo de casa rumo à sala escura. Chego já nos trailers, mas, agora, com o
filme todo pela frente. Bem instalada na poltrona localizada no meio da sala,
as minhas preferidas, fui reconhecendo ali todas as coisas que a gente sempre
pensa que já sabe, já sentiu ou já pensou sobre... É um filme sobre mudanças - como quase todos - na vida de uma mulher que não se reconhece mais em seu
papel.
No seu aniversário,
comemoração que ela mesma prepara, Agnes, a personagem, ganha alguns presentes. Desses, dois se
destacam: um iphone e um quebra-cabeça. Nenhum lhe causa grande surpresa,
porém, em breve ela iria descobrir a função desses objetos àquela altura de seu caminho. Até então, Agnes dispensava a tecnologia e sua suposta importância, não havia
nada que justificasse a utilidade daquele aparelho tão venerado e suas
possibilidades. Não havia motivos para acessar o mundo. Após fechar a caixa do
telefone sem sequer tirá-lo da mesma , abre a outra embalagem; esta faria jus ao status de
presente. Era um quebra-cabeça.
Como alguém que é
conduzida suavemente a uma nova experiência, a personagem descobre-se uma hábil
montadora de quebra-cabeças, não um quebra-cabeça qualquer, começara com um de mil peças. Ali reconhece algo de si e apropria-se dessa capacidade
incomum que a convoca a uma nova posição. As mudanças que lhe cabem e que alargam-se ao seu redor vão acontecendo no mesmo ritmo de alguém que ousa montar um desses, de infinitas peças. Ser capturado por algo que diz de nós (e só
pode ser assim) acontece muitas vezes, ou ao menos deveria acontecer... Não a
captura que torna refém, mas a que acorda o desejo. O que a metáfora do
quebra-cabeça não tem de original, o tem deixar-se envolver em um processo como
o que ele exige.
Dar conta de centenas
de peças soltas, que quando encaixadas tornam-se fim? Para quê? O curioso é que
já sabemos a imagem que se formará. Vem estampada na caixa. Não há mistério, ao
que parece. Por que, então, nos aventuraríamos a essa dança insana de encaixes e
desencaixes; de procura, espera, frustração, e de um longo tempo de não saber?
Agnes, após montar o
primeiro quebra-cabeça, e ela o monta e desmonta várias vezes antes de partir
para o próximo, vai à Nova York em busca de um novo desafio. É uma loja especializada onde encontra um
anúncio que a levará até seu parceiro de jogo. Trata-se de uma peça nova na
montagem ficcional por onde ela transita. Identificando, a seu modo e a seu tempo, um sentido
para o universo tecnológico, lança mão do telefone móvel pela
primeira vez e toma a decisão de entrar em contato com esse desconhecido como
quem escolhe uma peça dentre tantas outras. Vê-se disposta a escavar o que a
anima. Dessas escavações que dão passagem ao inconsciente, já iniciada por algo de arqueológico contido naquele ato de se a ver com os fragmentos.
As peças de um quebra-cabeça
só permitem que as pistas comecem a aparecer ao se movimentarem; movimento esse
de escolhas as quais, a princípio, não se sabe de onde vem. É preciso eleger
uma peça, para que o fluxo aconteça, como o discurso do sujeito em análise, que prevê
uma alternância necessária para que ele não paralise diante de todas as peças
ali disponíveis, ou pela falta delas. Nesse caso, algumas peças tem de ser cuidadosamente fabricadas, e artesanalmente. O abrir e fechar do inconsciente é possibilitado, entre
outras coisas, pela livre associação, pelo perder-se, pelo não saber, mas pela
posição do ser falante, que cria algo, que vai usando as peças que estão ao seu
alcance. Significantes que vão tomando o seu lugar na cadeia associativa. Conforme as formas vão
tornando-se reconhecíveis, mais essa aventura diz do desejo, ou seja, de como
articulamos as peças que levam à sua imagem. Imagem essa que, através do próprio movimento do desejo, acabaremos por desmontar.
Ao assistir o filme,
lembrei que havia comprado um quebra-cabeça há uns cinco anos atrás. Eu queria, e ainda penso nisso, conhecer o tempo que vem dali. Emprestei
ao meu irmão que conseguiu montá-lo até certo ponto. Ele já havia me devolvido
a caixa, mas na última vez em que fui visitá-lo ele me entregou uma peça bem
pequena desse quebra-cabeça o qual eu nunca comecei a montar. Ele deu tanta
importância a ela, e me disse:
- Guarda bem. Um dia tu
podes precisar.
Eu compreendi. Imagina
montar todo o quebra-cabeça e se deparar com uma peça faltante ao final do
caminho. Que grande ironia de nossa condição desejante, nós que já a carregamos sempre conosco. Aliás, somos a própria. Eu
andei um tempo com a minha na bolsa, tendo cuidado para não perdê-la, mas já
não sei bem para onde foi. Escapou-me...
Ainda que tenhamos realizado todos os encaixes, é a cada finalização aparentemente harmônica e conclusa que ela se mostra com
mais exatidão.
A falta prega-nos uma peça, a que nunca está lá.
S. Chaves
Um comentário:
Que linda analogia aos encaixes e desencaixes da vida!
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