19 de maio de 2009

Ela diz apenas: sim



Dizem por aí que ler é perigoso... E eu realmente acredito nisso, é sempre um perigo... Nunca sabemos o que temos em nossas mãos e o que dali pode nos arrebatar, nos abalar, e enfim, nos transformar. Desde que adquiri um livro intitulado "Cartas do Poeta sobre a Vida - A Sabedoria de Rilke" não sou mais a mesma, não posso ser...
Não quero me estender aqui falando do livro, até porque ele dispensa comentários, mas o que ele apresenta ao leitor são cartas do poeta Rainer Maria Rilke, cartas que ele escrevia em resposta às mais diversas pessoas e que refletiam seu pensamento sobre a vida. Como escreve o tradutor do livro, "Rilke explica a vida para nós", mas não uma explicação didática, moralista, política, religiosa, etc... Trata-se, na minha opinião, de explicações profundas, de um sábio, de alguém que conseguiu extrair da existência as mais belas conclusões (não sei se "conclusões" seria a palavra ideal...). Não se trata de uma leitura fácil, não só pela construção de seu pensamento em algumas passagens, mas também por toda a força que ela possui.

Resolvi colocar aqui uma passagem, talvez a mais linda (se eu tivesse de apontar uma delas) sobre a morte, assunto que sempre foi de meu interesse... É extensa, mas aos leitores mais pacientes, garanto-lhes que não se arrependerão de ir até o fim.


"Palavras... poderiam ser palavras de consolo? Não estou certo disso, tampouco acredito realmente que poderíamos ou deveríamos nos consolar de uma perda tão repentina e grande como a que você sofreu. Nem mesmo o tempo "consola", como se diz superficialmente; ele, na melhor das hipóteses, põe as coisas no devido lugar e cria ordem - e isso apenas porque a ordem para a qual ele contribui tão serenamente nós mais tarde assumimos de modo tão pouco exato, a observamos tão pouco, que, em vez de admitirmos aí o que agora está ajustado, apaziguado, conciliado no grande Todo, nós o vemos como esquecimento e fraqueza do coração, só porque isso não nos causa mais tanta dor.

Ah, como o coração esquece pouco, o coração - e como ele seria forte se não lhe retirássemos suas tarefas antes que tivessem sido concluídas e realmente cumpridas!

Não querer consolar-se de tal perda, esse deveria ser nosso instinto; antes, nossa profunda e dolorosa curiosidade deveria explorá-la totalmente, experimentar a peculiaridade, a unicidade justo
dessa perda, seu efeito dentro de nossa vida. De fato, deveríamos adotar a nobre avidez de enriquecer nosso mundo interior precisamente com essa perda, com seu significado e seu peso...

Tal perda é, quanto mais fundo nos afeta e mais veementemente nos concerne, tanto mais uma
tarefa de entrarmos numa posse nova, diferente e definitiva do que agora foi tão desesperadamente enfatizado pelo estado de perda. Isso é então a realização infinita que instantaneamente vence todo o lado negativo que se prende à dor, toda indolência e condescendência que sempre constituem uma parte da dor. Isso é dor ativa, interiormente atuante, a única que tem sentido e é digna de nós.

Não amo as concepções cristãs de um além;cada vez mais me distancio delas, sem evidentemente pensar em atacá-las; elas podem ter seu direito à existência, ao lado de tantas outras hipóteses da periferia divina. Para mim, no entanto, elas representam antes de tudo o perigo de tornar nossos entes perdidos menos exatos e inicialmente mais inalcançáveis para nós; e também nós próprios, movendo-nos nostalgicamente para esse além e
longe daqui, ficamos menos precisos, menos terrenos.

Precisos e terrenos é o que, por ora, enquanto estamos aqui e somos aparentados com árvore, flor e solo, devemos continuar a ser no mais puro sentido e o que ainda devemos sempre nos tornar!

No que me diz respeito, o que morreu para mim morreu entrando, por assim dizer, em meu próprio coração: a pessoa desaparecida, quando a procuro, recolheu-se de forma tão singular e surpreendente
em mim, e foi tão tocante sentir que agora ela existia apenas ali, que meu entusiasmo de servir à sua existência nesse local, de aprofundá-la, glorificá-la impôs-se quase no mesmo instante em que a dor habitualmente teria assaltado e devastado toda a paisagem da alma.

Quando me lembro do quanto amava meu pai - amiúde na mais extrema dificuldade de nos entendermos e nos aceitarmos! Na infância meus pensamentos muitas vezes se confundiam, e o coração quase parava com a mera idéia de que ele poderia não mais existir; minha existência parecia tão completamente determinada por ele (minha existência, que desde o início teve um desígnio tão diferente!) que sua partida teve para minha natureza mais interna o mesmo significado de meu próprio declínio...

Mas a morte está tão profundamente cravada na essência do amor (contanto que sejamos apenas cúmplices desse fato sobre a morte, sem nos deixarmos desorientar pelas fealdades e suspeitas atreladas a ela) que não o contradiz em lugar algum: para onde afinal ela poderia deslocar a única coisa que tínhamos levado tão inefavelmente no coração senão para dentro desse coração mesmo, onde estariam a "idéia" desse ser amado, seu efeito incessante (pois como poderia cessar essa influência que, já enquanto vivia a pessoa amada, tinha se tornado cada vez mais independente de sua presença tangível)... onde esse efeito sempre secreto estaria mais seguro senão dentro de nós?!

Onde poderíamos nos aproximar dele, onde celebrá-lo com mais pureza, quando obedecer-lhe melhor senão quando ocorre em uníssono com nossas próprias vozes, como se nosso coração tivesse aprendido uma nova língua, uma nova música, uma nova força!

Censuro todas as religiões modernas por terem fornecido a seus fiéis consolos e embelezamentos da morte, em vez de terem dado à sua alma os meios para se entenderem e chegar a um acordo com ela. Com ela, com sua crueldade total, sem máscaras: essa crueldade é tão monstruosa que o círculo se completa justo nela: ela já toca de novo no extremo de uma suavidade que é grande, tão pura e tão perfeitamente
clara (todo consolo é turvo!) como jamais imaginamos a suavidade, nem mesmo no mais doce dia de primavera!

Mas para a experiência dessa profundíssima suavidade, que, se apenas alguns de nós a sentissem com convicção, poderia talvez penetrar e tornar transparentes todas as circunstâncias da vida: para a experiência
dessa suavidade, a mais rica e intacta, a humanidade nunca deu nem mesmo os primeiros passos, a não ser nos mais antigos, mais ingênuos tempos cujos segredos praticamente se perderam para nós. Estou certo de que o conteúdo das "iniciações" jamais foi outra coisa senão justo a comunicação de uma "chave", que permitia ler a palavra "morte" sem negação; tal como a lua, a vida decerto tem um lado virado na direção oposta a nós, que não é seu contrário, mas seu suplemento para a perfeição, a completude para a esfera realmente intacta e total do ser.

Não devemos temer que nossa força não baste para suportarmos uma experiência de morte, nem mesmo a mais próxima e mais terrível; a morte não está acima de nossa força; ela é o mais alto marco gravado na borda do vaso: estamos cheios tão logo o alcancemos, e estar cheio significa (para nós) ser pesado... isso é tudo.

Não quero dizer que se deva amar a morte; mas devemos viver a vida tão irrestritamente, tão sem cálculo e seleção, que espontaneamente incluiremos a morte (a metade da vida voltada na direção oposta a ela), nós a amaremos juntos - é exatamente o que ocorre toda vez nos grandes movimentos irrefreáveis e ilimitados do amor!

A morte tornou-se algo progressivamente estranho apenas porque a excluímos num surto de reflexão, e, como a mantivemos na estranheza, ela se tornou hostil.


É concebível que a morte esteja mais infinitamente próxima de nós do que a própria vida... O que sabemos a respeito?! (...) Nosso esforço, penso, pode ir na direção de pressupor a unidade da vida e da morte para que ela, pouco a pouco, se manifeste para nós. Preconceituosos como somos contra a morte, não conseguimos soltá-la de suas desfigurações...

Acredite, a morte é apenas uma
amiga, nossa mais profunda amiga, talvez a única que jamais, jamais se abala com nosso comportamento e hesitações... e isso, é evidente, não no sentido sentimental-romântico da negação da vida, do contrário da vida, mas nossa amiga justo então, quando, do modo mais apaixonado, mais movido, aprovamos nosso ser-aqui, o acontecer, a natureza, o amor... A vida diz sempre ao mesmo tempo: Sim e Não. Ela, a morte (imploro-lhe que acredite!), é que realmente diz Sim. Ela diz apenas: Sim. Diante da eternidade."

Nenhum comentário: