28 de julho de 2009

Doce obscuridade - IV

Sabemos ao certo o poder das coisas "imperceptíveis", a proporção que podem adquirir diante de um coração frágil e desatento?

Ela não esperava, nem ao menos desejava, a menos que lhe faltasse esse conhecimento, ser gravemente atingida por aquele fragmento de tempo que lhe impôs aquela representação despovoada, uma imagem, que desde então nunca foi capaz de afastar.

Foi até engraçado, ou irônico, como se encontraram. E todos os detalhes que possam vir a interessar ou compor o contexto do momento devem facilmente ser excluídos de atenção, já que tornariam tudo demasiado concreto e familiar.

O entendimento de seu coração só tomou forma a partir daquele instante, em que ela parou o seu olhar adulto bem no centro daqueles olhos, mas que não tornaram-se também olhar, precaveram-se apenas olhos.

Ela teve coragem, embora tenha sido também trabalhoso, em estender uma linha imaginária desenhada pela curiosidade, que partia de seu íntimo e ia ao encontro daquele universo suspenso e sem definição onde habitava o que agora era minuciosamente admirado.

Eram tão indecifráveis... Ou talvez não... Talvez fossem facilmente inteligíveis, expostos, fragilmente desprotegidos. Certamente que não eram olhos comuns, olhos de quem vive os dias de uma existência tranquilamente suportável.

Eles olhavam para o nada e traduziam-se em um vazio triste, como se nunca tivessem aprendido a sustentarem-se em um ponto seguro. Não dirigiam-se a ela, a menos que não tivesse percebido, o que era bom, pois proporcionava uma liberdade ainda maior àquela contemplação desmedida.

Pois que eram apaixonantes. Até de uma crueldade bonita. Não sabiam, mas eram suficientemente encantadores e detinham uma força descomunal no caso de, pelo descuido de uma atenção dedicada a eles, irresponsavelmente cravarem sentimentos difíceis em quem pudesse apreendê-los.

E rápido, e simples assim, a sua vida fora transformada. Uma única vez aqueles olhos, e tudo o mais só seguiu tendo como sustento essa base insólita.

Se os tivesse explorado outras vezes daquele mesmo jeito. Se ao menos tivesse tido a chance de torná-los mais familiar e tantas vezes até que o tempo os transformasse e lhes atribuísse qualquer coisa de simplesmente aceitável. Mas não, não mais conseguiu ter a oportunidade de mergulhar naquela doce obscuridade, e o que deveria ser um motivo para que seguisse ilesa, a impossibilidade, tornou-se exatamente a causa de sua progressiva fixação emocional.

Vejam só... Que piegas e irritante torna-se um fato quando desvelada a sua causa. Olhos, olhos... Não poderiam ser assim tão grandiosos, a ponto de... tudo o que se seguiu.

É que grandes acontecimentos não caberiam naquela vida, nunca houve espaço para eles. Sim, era bem possível que viesse a se transformar inteira por uma tola interpretação de seu coração. Transformou-se, tentou de várias formas abandonar o sentimento, deixou-o perdido, sem probabilidade alguma de sofrer qualquer risco. Não aguentou, certa vez chorou, mas nunca, nunca mesmo o trouxe para perto de si de tal forma que viesse a libertar-se nele.

Seria um tanto cruel se a chamássemos corajosa ou covarde. A situação transpassava essas categorias comportamentais, visto tudo o que se fez necessário enfrentar. Um sentimento jamais exposto deve ter atingido dimensões assustadoras, guardado num sorriso falso, em um corpo reprimido.

Até as conclusões a que chega essa que agora escreve, só surgiram a partir de outras palavras, também escritas, e guardadas, deixadas por ela quando daqueles momentos de salvação, visto que nunca pudera conhecer a face do que sentia na forma de sua voz, ou ainda melhor, de um fato consumado.

Tudo resumiu-se na importância daquela irrealidade em sua vida. Uma traça a corroer-lhe a existência, a diminuí-la até que nada mais lhe restasse. E de fato, nada mais lhe restou. Acabou mesmo miserável na sua dor conhecida.

Durante toda a sua história nunca houveram linhas a serem preenchidas por qualquer tipo de acusação, que não as suas próprias, conclusões coerentes ou asserções. Nem tão pouco houveram coisas a contar, surpresas inesperadas ou revelações excitantes. Viveu a vida para desejar o que nunca pode chamar de real.

Assim, acabo por deixar que venhamos a imaginá-la de outra forma, se quisermos essa responsabilidade, talvez.

Quem sabe tudo o que poderia devolver-lhe aquele olhar...

(S. Chaves)

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