17 de julho de 2009

O Piano


A história começa antes mesmo que pudesse imaginar tornar-se história. Num momento nada raro em que eu, na faculdade onde estudo, estava a desfrutar de um momento solitário, daqueles que têm o seu valor, para variar, num café. Eu havia feito uma prova e como acabara cedo fiquei ocupando uma mesinha e lendo um livro para um seminário de Saúde Mental Coletiva. O livro, "Clínica Peripatética" de Antonio Lancetti. Eu estava realmente absorvida pela leitura, visto o seu conteúdo instigador e relatos de práticas corajosas e transformadoras no contexto da saúde mental.

De repente, um acontecimento começa a se fazer de forma sutil e progressiva, como se a realidade quisesse me apresentar uma situação em que eu pudesse pôr em prática alguma atitude que fosse reflexo daquela leitura. Levanto meus olhos para perscrutar o ambiente e lá longe vejo uma senhora de braços dados com um menino. Eles não tinham uma aparência comum, dita "normal", e aproximavam-se na direção do café. Voltei à leitura e após alguns segundos, tornando a olhar em volta, outra cena parecida, e então pensei... Que coincidência, pois se não é exatamente sobre essas pessoas, pessoas com alguma deficiência (física ou mental), que estou a ler nesse momento. Mas, como ainda não sei exatamente o que significa essa situação a que chamamos de coincidência, tentei mais uma vez voltar a atenção para o livro, mas foi inútil, porque de um momento para outro o ambiente foi tomado por dezenas de pessoas que saíam de uma sala específica, a qual eu não conseguia avistar, todas elas, ou melhor, na sua grande maioria, pessoas com algum tipo de transtorno ou problema físico aparente.

Esse ambiente no qual eu me encontrava é de uma estrutura que dá a sensação de se estar em um enorme salão. É um grande espaço, que fica no prédio da biblioteca da faculdade, no andar térreo, onde encontra-se uma livraria, salas de informática, bancos, restaurante, etc, etc... É um ambiente bastante agradável, mas impossível não sentir-se bem pequenino diante de sua imensidão. Penso que foi exatamente dessa forma que a maioria daquelas pessoas sentiram-se. Elas vinham devagar e atentas aos detalhes do lugar, olhando para cima e examinando coisas simples, corriqueiras, mas que lhes chamavam a atenção.

Logo meu olhar foi capturado por um menino, um jovem rapaz, que estava meio que só naquela pequena multidão, ele estava tão absorto, que a partir desse momento não consegui mais retirar os olhos de cada movimento seu. Enfim, fechei o livro e o abandonei momentaneamente. Dediquei-me a observá-lo, talvez pelo carisma silencioso que manifestava-se a partir de suas feições, feições de alguém totalmente desprotegido, desamparado... Chamou a minha atenção o fato de que ele tocava em tudo, como uma pessoa que não vê e guia-se a partir do tato, mas ele via... E mesmo assim, tinha uma grande necessidade de tocar e sentir a textura das paredes e outros objetos.

Porém, a partir daí comecei a tomar consciência de uma situação repugnante, situação essa quase imperceptível, mas visto um certo olhar que tendemos a desenvolver a partir de nossas áreas de formação, comecei a perceber certas sutilezas as quais poderia chamar de falsos poderes, para não dar um outro nome, mais feio, mais sujo, mais podre...

Algumas pessoas ali eram "normais", digamos assim, não apresentavam nenhuma característica que as desfavorecessem e que as fizessem necessitar tão diretamente e urgente de um outro. E essas pessoas estavam a guiar as outras, as "não normais", e a CONTROLAR os seus comportamentos, que pelo visto, pareciam ser sinônimo de muito perigo para os que frequentavam a universidade. Bárbaros tomavam conta do ambiente e eles, os protetores, poderosos guardiões da normalidade, estavam ali para defender-nos, assim como o patrimônio físico da instituição.

Nojo... Muito nojo e revolta foram os sentimentos que começaram a nascer em meu interior. Nada aparente, mas lembrando Foucault, o grande perigo da docilização está nos detalhes.
Mal o menino ia tocar em alguma coluna, ou em uma porta qualquer, um segurança já o chamava a atenção, numa dessas ele foi seguindo o menino até que ele se juntasse aos outros que agora já ocupavam as mesas do café. Acredito que se tratava de um intervalo de algum evento, onde eles provavelmente estavam servindo para embelezar algum projeto, ou então, para ilustrar alguma futura notícia de jornal...

Comecei a prestar a atenção nas posturas dessas pessoas que os orientavam, como se fossem qualquer coisa, que não sei nem dizer... Ficavam repetindo coisas do tipo: -Vamos rápido, não adianta sentar não.... -Aqui nessa mesa é refri para todo mundo, não é para pedir nada para comer, não dá tempo... -Rapidinho, vamos lá, vamos lá...
Eu pensava... Para que os trouxeram aqui então? Mas o que me incomodava era o tom da voz... A superioridade manifestava-se naquelas pequenas coisas...

Atrás de onde eu estava sentada, havia um piano, com a tampa fechada. Sim, o piano... Ele já deveria ter aparecido na história, mas devido às proporções dos meus sentimentos em relação a esse fato, não tenho como desprover o acontecimento de todos os detalhes. Desculpem...

Eu estava de costas para o piano e ouvi uma voz que se encontrava de colete amarelo, com um crachá, achando o máximo o seu momento de exercer poder. Ela disse: -Não!!! Aí não pode mexer!!! Foi quando eu olhei para trás, sim, porque pensei que haviam arrancado uma tecla do piano. E no momento em que me virei vi que era o menino, o que gostava de tocar nas coisas. Ele havia mexido naquele piano sagrado, mas não vi se havia levantado a tampa do mesmo ou se havia apenas tentado, estando essa fechada com chave.

A dona do colete amarelo então, achou uma forma de executar bem a sua função e a partir daí ela não se mexeu mais, resolveu ficar ao lado do menino, olhando-o, de braços cruzados, com uma cara de general, que dava vontade de rir tamanha situação patética. O menino virou-se de costas para o piano, mas ficou sentado no banquinho que acompanhava o mesmo. Eu sabia o que tinha de fazer, tinha certeza. Eu queria interferir, mas de uma forma educada e desaforada ao mesmo tempo. Eu fiquei perplexa olhando aquela situação... Um suspeito terrorista nos EUA talvez não sofresse tanta marcação cerrada. No meu pensamento eu iria levantar, dar dois passos, e perguntar a ele: -Você quer ver o piano? Era só o que eu precisava dizer. Então, eu levantava a tampa, ele apertava algumas teclas e então, a gente fechava a tampa e ele poderia sair dali, para comer algo quem sabe... Mas havia apenas uma coisa a me impedir. A tampa. Eu não sabia se ele tinha aberto, ou se ela estava trancada. E então, se ela estivesse trancada... O que eu faria? De que forma poderia interferir? Hoje, milhares de opções, mas na hora... Eu fiquei pensando e pensando e o sangue fervendo, e em nenhum momento eu conseguia tirar os olhos dele. Tanto que ele começou a me olhar também. Eu nem consigo imaginar que cara eu tinha naquele momento... O que ela expressava. Mas, enfim, eu acho que ele entendeu... Ele leu meus pensamentos... Era a única explicação.

Tratava-se daqueles momentos em que se você não faz o que acha que deve fazer, é quase como se aniquilasse toda a sua integridade. O que me vinha na cabeça era que eu não me perdoaria. Aquilo era tão injusto! Tão feio! Tão covarde! E ela continuava ali... Ela pedia para ele levantar-se, porque sentar ali também não podia. Eu fiquei olhando para ele, falando através do olhar tudo o que eu estava pensando. Ele percebeu. Olhava para mim e baixava os olhos, depois tornava a olhar. E então, ele me salvou... Ao invés de eu lhe salvar, ele me salvou, de uma culpa maior, de carregar por um bom tempo a sensação de impotência que se apoderou de mim. Ele levantou-se devagar, e não porque a sucessora de Hitler pediu, fez a volta na mesa onde eu estava, puxou uma cadeira e sentou-se comigo, bem na minha frente. Eu apenas sorri e disse: -Fique à vontade. Ele não disse nada, mas ficou ali comigo, alguns minutos, me olhando, com uma expressão que partiu meu coração em infinitos pedaços. Depois, todos eles precisaram se retirar. E só para completar o circo dos horrores que havia se formado, uma mulher começa a bater fotos deles, certamente para anexar a um texto com palavras bem bonitas de como essa experiência foi válida para eles, claro, graças a elas.

Ele levantou-se e foi embora, sem falar nada, também não sei se falava e de que forma falava, mas disse muita coisa com esse gesto. A culpa de não ter levantado e feito alguma coisa por ele não se dissipou por completo. Ainda hoje me acompanha, mas fiquei mais calma porque ele compreendeu, alguma coisa ele compreendeu. Ele soube que ali, no espaço que eu ocupava ele podia sentar e ficar. Não esquecerei, tenho certeza, da sua espontaneidade e da forma como veio até mim. Também não esquecerei o seu rosto quando aquela mulher falava com ele, e a forma como ele a ignorava, porém sem defesa, tão entregue à sua condição de apenas suportar.

Depois disso, um grande vazio... O ambiente ficara ainda maior. Não retomei a leitura, não consegui fazer mais nada. Paguei a conta e fui embora. Na viagem de volta para casa aqueles olhos me acompanharam sem abandonar-me um segundo sequer. Até hoje eu daria tudo para saber se a maldita tampa estava trancada, ou não.

(Sheila Chaves)

Um comentário:

Ana disse...

Antes de puxar a cadeira e sentar na tua frente, na mesa... tu já tinha feito o convite! O menino já era teu convidado... sim, ele leu a tua expressão.

Depois eu te mostro o conto completo do Manoel (ele novamente): "O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. (...). O menino que era esquerdo e tinha cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o pente (...). Eu acho que as árvores colaboravam na solidão daquele pente."
O menino, o pente e as árvores... todos eles naquele "grande espaço, que fica no prédio da biblioteca da faculdade".

A tampa não estava trancada...eu pude ouvir o som do piano no momento em que o menino sentou na tua frente.
A história me comoveu.