7 de setembro de 2009

Pois permanecer não há.


Rilke estava, então, com 36 anos e havia produzido muito e com qualidade inquestionável. Se sua vida tivesse terminado naquele ano, sua obra certamente seria considerada uma das grandes obras poéticas dos anos de mudança de século.


Mas a obra profunda estava por vir.

Depois de angústias às vezes insuportáveis, ela veio, finalmente, em pouco mais de duas semanas, em janeiro/fevereiro de 1922. Nestes dias, ele completa dez elegias e, como complemento, 55 sonetos que são como um movimento allegro ma non troppo permeando a obra principal.

O poeta é o principal "assustado" com a criação. Ao seu editor escreve, no dia 9 de fevereiro: "...eu não sabia que poderia acontecer um tal furacão de espírito e coração! E que é possível sobreviver a ele!" (...) Sobre o sentido das elegias, muito já foi escrito. Rilke escreveu com maior intensidade uma vez ao seu tradutor polonês Witold Hulewicz, em novembro de 1925:

"Nas elegias, a aceitação afirmativa da vida e da morte surge como sendo única. Concordar com uma sem concordar com a outra seria uma limitação que excluiria, ao final, tudo que é infinito. A morte é a face da vida não voltada para nós, não aclarada por nós... Nossa tarefa é a de imprimir esta terra provisória, caduca, em nós com tal profundidade, tão dolorosamente, tão apaixonadamente que a sua essência ressucite 'invisível' em nós."

(Karlos Rischbieter, no prefácio do livro "Os Sonetos a Orfeu / Elegias de Duíno", Rainer Maria Rilke)


A Primeira Elegia

Quem, se eu gritasse, ouvir-me-ia na hierarquia
dos anjos? E mesmo que um deles me apertasse,
de repente, ao seu coração: eu padeceria perante sua
existência mais forte. Pois o belo nada mais é

do que o começo do Terrível que ainda suportamos;
e o admiramos porque, sereno, desdenha
destruir-nos. Todo anjo é terrível.
E assim me contenho e retenho o apelo
do meu soluço sombrio. Ai, a quem podemos
dirigir-nos? Aos anjos não, nem aos homens;
e os animais astutos já notaram

que nós não somos confiáveis

neste mundo definido. Resta-nos, talvez,

uma árvore qualquer na encosta, que revemos

todos os dias; resta-nos a estrada de ontem
e a fidelidade mimada de algum hábito
que gostou de nós e conosco ficou e não se foi.
E a noite, a noite, quando o vento, pleno de espaço

do mundo, roça nossa face, não seria ela - a desejada,

levemente enganosa - desafio penoso para
o coração solitário? Será ela mais fácil para os amantes?
Ai, eles apenas escondem, um do outro, o seu destino.
Não o sabes
ainda? Lança o vazio dos teus braços
aos espaços que respiramos; talvez os pássaros
sintam o ar mais amplo em seu vôo mais íntimo.

Sim, as primaveras precisavam de ti. Algumas estrelas

queriam que as percebesses. Avolumou-se
uma onda, vinda do passado; ou então,
ao passares por uma janela aberta,

um violino se entregava. Tudo isto era missão.

Mas será que a cumpriste? Não estavas sempre
distraído pela espera, como se tudo
anunciasse uma amada? (Onde a abrigarias,
já que pensamentos amplos e estranhos te
povoam e muitas vezes ficam noite adentro.)
Se, porém, vier a angústia, canta as amantes; pois ainda

não foi suficientemente imortalizada a sua maravilhosa paixão.
Canta aquelas, que quase invejaste, as abandonadas, as que

achaste tão mais apaixonadas que as acalmadas. Retorna
sempre de novo o louvor inantingível;

considera; o herói se preserva; mesmo sua queda foi

apenas pretexto para existir; seu nascimento supremo.
Mas as amantes, estas a natureza exausta
recupera, como se não houvesse forças para criá-las
duas vezes. Pensaste o suficiente em Gaspara Stampa,
para que uma jovem qualquer,
abandonada pelo amante, se mire no seu exemplo maior,
e sinta: pudesse eu ser como ela!
Não deveríamos, afinal, fazer frutificar nossas dores
mais antigas? Não é tempo, que, amando,
nos livremos do amante e, tremendo, o superemos?
Como a flecha supera a corda, para, concentrada no

disparo, ser
mais do que ela. Pois permanecer não há.

Vozes, vozes. Ouve coração meu, como só
ouviam os santos, quando um chamado intenso

os elevava do chão; eles, porém, permaneciam ajoelhados,

impossíveis criaturas, e nem prestavam atenção:
era
assim que ouviam. Não que possas suportar a voz
de
Deus, longe disto. Ouve, porém, a voz do vento,
a mensagem constante que se forma do silêncio.

Sentes agora o murmúrio daqueles jovens mortos.

Onde quer que entraste, nas igrejas de Roma

ou Nápoles, não te tocava, sereno, o seu destino?

Ou aquela inscrição, outro dia, na placa em Santa

Maria Formosa, não te impressionava ela, sublime?

O que queres de mim? Que eu remova, suavemente,

as aparências de injustiça, que perturbam, às vezes,

o movimento puro de suas almas.


Certamente é estranho não mais habitar

a terra, não mais praticar costumes apenas

apreendidos, não mais dar destino humano às

rosas e outras coisas promissoras; não mais ser
aquilo que se era, entre mãos infindamente angustiadas,

e esquecer, até, o próprio nome

e largá-lo, como um brinquedo quebrado.

Estranho, não mais desejar os desejos. Estranho

ver, flutuando no espaço, tudo que estava

relacionado. E o estar-morto é penoso
e pleno de tentativas para chegar a sentir, enfim,

um pouco de eternidade. - Mas os vivos cometem,

todos, o erro de distinguir em demasia.

Os anjos (dizem) muitas vezes não sabem se

andam entre vivos ou mortos. A torrente eterna

arrasta todas as idades pelos dois domínios,

para sempre e, nos dois, os sobrepuja.


Afinal não mais precisam de nós, os mortos precoces;

docemente se desacostumam do terrestre, como ternamente nós

nos desabituamos do seio materno. Mas, nós que precisamos

dos grandes mistérios; nós, que muitas vezes usamos a dor
para atingir o avanço abençoado -:
poderíamos ser, sem eles?
Seria sem sentido a lenda que, outrora, no lamento por Linos,

surgiu a primeira e ousada música, penetrando árida rigidez;
que, no espaço assustado, abandonado - de súbito e para sempre -
por um jovem quase divino - o vazio, pela vez primeira,

entrou naquela vibração que agora nos arrebata, consola e ampara?

(Rainer MariaRilke)

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