14 de agosto de 2010

Pele para colocar por cima


A minha dor eu sei resolver. Ainda que seja a custo alto, sei resolver. Pode ser com um calmante, um trabalho físico, um desabafo. Pode ser mexendo na horta, organizando as roupas no armário, limpando a casa, xingando Deus; eu sei resolver. Ainda que demore, resolvo.
O que não sei resolver é a dor do outro. Fico mudo, meu braço sobra, minha mão falta, minha boca treme algum vento sem força.
A dor do outro não se comunica. Não dá nem tira emprego.
A dor do outro me isola. Tento uma brecha para falar, mas sinto-me intruso, incômodo, solteiro. Como uma casa em reforma.
Toda dor só é compreensível no idioma da dor. Quem está de fora não entende, não tem razão, não alcança sentido. A dor não busca conselhos; a dor busca a pele para colocar por cima, busca cicatrizar a ferrugem e a maresia.
A dor do outro é pedalar com a respiração. Ela me desfalca, me devassa, me faz duvidar de que eu podia ter ouvido.

A
dor do outro é a minha dor mais pessoal, porque é indiferente à minha própria dor.
A dor do outro é uma parada de ônibus sem ônibus por vir. Uma parada de ônibus para se sentar e não ir.

A dor do outro fica no lugar da dor, não suporta um passo além do círculo de sua lembrança fixa.
A dor do outro tem a altura de um grito que não é dado para não desperdiçar a dor.
A dor do outro não ri, porque, séria, chega mais rápido ao seu fim.

A dor do outro não se empresta, é dor de osso, dor que não se enxerga de dia e nem de noite. [...]
A minha dor eu resolvo. A dor do outro não sei aonde colocar, onde me colocar. Faço como minha avó Elisa. Quando alguém recusava um abraço, ela pedia para devolvê-lo.
Devolver o abraço é a dor do outro.


(Fabrício Carpinejar - Pássaros comem na mão, do livro "O Amor Esquece de Começar")

5 comentários:

Wania disse...

Sheila querida!

Este livro do Fabrício é o meu preferido! Tem cada texto liiindo!

Obrigada pela partilha!
Bj grande

Sheila C.S. disse...

É lindo mesmo, Wania! Eu me perco nele... Abração.

Ana disse...

O texto me calou...
Depois que li me pego pensando nas palavras em intervalos do dia.
Ler Fabrício é um passeio...num dia chuvoso ou num ensolarado.

Gosto de ler a avó e o avô nos textos. A avó "com seu olhar madrepérola". E o avô "personagem de si mesmo, nunca me deu tempo para criar amigos imaginários."

Belo, belo texto... eu gosto mesmo dele!

Beijão enorme.

Sheila C.S. disse...

Que lindo teu comentário, Ana! Não sei se entendi bem, mas para quê o amigo imaginário, se esse personagem, tão "dono de si mesmo", como colocas, é capaz de preencher de tal maneira todas as casas da imaginação. Que companhia não deveria ser... :) beijão

Ana disse...

:))
Justamente... o avô não deu tempo para os amigos imaginários... fizeram-se desnecessários.
Eu acho tb... Uma companhia e tanto!
Ele cita os avós em vários textos... sempre uma memória... tão singelo.

No mesmo texto dos "amigos imaginários" ele cita uma afirmação do avô: "Onde já se viu comer bicho que já escutou minha voz? Vou comer minha voz dentro do bicho". E foi só o começo para o "seguro de vida dos animais"... que teve batismo e "coleção de fotos na parede da sala. Vinte e dois animais 3x4."
E no batismo... "as árvores foram nomeadas por engano". (é um texto do blog, de junho de 2005, "Retrato dos animais da casa").

Literar a infância é o que Fabrício faz de vez em quando.

Beijão enorme. Saudade.