21 de abril de 2017

Há flores no vaso

Em um trabalho que me dispus a contribuir, sobre o texto "Escritores Criativos e Devaneios", de Freud, usei como uma das referências o livro de Marco Antonio Coutinho Jorge, "A Clínica da Fantasia" - Vol. 2, da coleção "Fundamentos da psicanálise - de Freud a Lacan". 

No capítulo "Arte e travessia da fantasia", o autor traz como uma das referências para desenvolver o tema, o filme "As Horas" (2002), obra que não cessa de produzir efeitos em mim. A partir da metáfora das flores no vaso, ele faz uma analogia entre o vazio real e a fantasia. O autor relaciona as três Horas do dia (a manhã, o entardecer e a noite) com as três personagens: Clarissa Vaughan, Laura Brown e Virgínia Woolf. 
"Três sujeitos diante da pulsão de morte e atravessados por três posições fantasísticas diversas: como as Horas da mitologia grega, Eunômia, Dicéa e Irene." (p.252)

Destaco aqui a passagem que fala de uma das personagens, aquela que representa o dia, os inúmeros recomeços, a beleza que pode ser reconhecida no incessante trabalho que é viver e produzir sentido ao longo das horas, apesar de...


"Clarissa vive em Nova York em 2001, é editora, tem uma filha adulta e uma namorada com quem partilha uma casa. Sempre ocupada com seus afazeres domésticos, ela organiza com detalhes a festa na qual Richard, já na fase mais adiantada da doença, seria homenageado com um prêmio pelo conjunto de sua obra, marcando os lugares das mesas e cozinhando. Sua fantasia está preservada e é sempre renovada, pelo trabalho, pela amizade, pelo amor. O olhar de Clarissa está sempre iluminado, brilhando, refletindo a luz do dia. Nem mesmo a morte de Richard abalaria a felicidade que conquistava em cada momento de seus dias. Clarissa se apega a seus objetos amorosos, constrói sua fantasia incessantemente e não abre mão dela.
Antes de ir para a cama à noite, seu olhar acaricia amorosamente a sua casa, um verdadeiro lar. Ele está sempre repleto de vasos com flores: apesar da morte, da perda do amigo, da dor do encontro com Laura Brown, que veio para o enterro do filho, do desencontro contínuo imposto pela vida, ela consegue fantasiar e sonhar. Ela sabe que é necessário pôr flores no vaso constantemente: é preciso preencher o vazio com a beleza mais pura, mais gratuita, para que a vida tenha algum sentido e para aplacar a dor de existir. E as flores bem simbolizam aquilo que na natureza expressa a transitoriedade inerente à felicidade. Das três Horas, apenas a ela se aplica a formulação de Lacan: "A realidade é aquilo sobre o que a gente repousa para continuar a sonhar."

(Imagem: Tela de Clóvis Graciano)

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