7 de maio de 2017

é também paixão








De onde venho, meu velho, para onde vou? 
Mas nenhum traço de comoção dramatiza minha voz. 
Estou calmo, lúcido, fumando. 
Nem careço rigorosamente de escrever uma carta: 
ninguém me chama, ninguém me espera, ninguém me denuncia. 
O coração pesa e se refugia silencioso entre possibilidades e apreensões. 
Dir-se-ia um coração cansado. 
Entretanto, meu velho, esse é um valente coração. 

... Como se torna difícil explicar as coisas 
quando a liberdade instala em nós seu reino de incertezas. 
Agora, eu preciso distinguir cada céu, 
conseguir de cada um a intimidade singular, 
de cada vento devo arrancar o segredo, a confidência, 
de cada alegria é preciso que eu estabeleça os limites, 
organizando as paisagens que a compõem, 
que lembranças me vivem na alma, que tonalidade de luz me cerca, 
que momentos de tédio ou ansiedade precederam o prazer de colecionar conhecimentos. 
Agora, irmão, tudo é diferente e nada se repete. 

Sou de índole fragmentada e dispersa. 
Quando não me engole a tragédia, me apaixono a todo instante: 
uma lembrança, um rosto, uma faixa de areia branca 
suavizando a visão de edifícios e quintais. 
A entrega, entretanto, jamais humanizou meus amores. 
Eu me apaixono pelas possibilidades, isto é, 
as nuanças, as entregas arrependidas, indecisas ou inconscientes, 
isso que promete negando ou nega prometendo, 
tudo isso me encanta e reclama. 

O que me interessa nas coisas é o que elas poderiam ser. 
O que me atrai nas criaturas é a disponibilidade, 
essa linda e trágica espera incessante, 
esse constante vigiar das tentações, 
como se torcêssemos pela circunstância, pela pessoa, 
pelo demônio que viesse (que sempre parece vir) 
nos arrancar dos trilhos para as cambalhotas da vida. 

Você há de ter observado, meu velho, um rosto, 
um olhar disciplinado e intimidado por séculos de civilização burguesa, 
você há de ter notado que nesses rostos 
costuma brilhar de vez em quando um anseio esquisito, 
uma luz que é bem uma sede de pecado, de desconhecido, de desastre. 
Instantes em que se revela em nós o pagão – o selvagem, 
o homem que deseja perder a própria vida e não ganhar. 
Bem, irmão, esses momentos são tudo pra mim. 

Quanto de entrega existe entre mim e as pessoas que me rodeiam? 
Que porcentagens extraio das almas que me escutam? 
Que espécie de vida viveríamos se ousássemos mais um pouco? 
Talvez essa lucidez minha seja triste. 
Mas, mermão, a lucidez é também paixão, 
e a mais irremediável que eu conheço. 

(fragmentos de "Carta a Otto ou Um Coração em agosto" - Paulo Mendes Campos; imagem do filme "A cidade onde envelheço")

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