15 de agosto de 2017

Na pele do tempo





"As Horas", assim como o próprio sentido do termo, não cessa de me levar por caminhos mais profundos, como uma fonte inesgotável sempre a me dar de beber e a me provocar sede. Ontem minha turma do percurso em Psicanálise da APPOA teve a felicidade e o privilégio de trabalhar essa obra. Tanto o filme, de Stephen Daldry, quanto o livro, de Michael Cunningham, foram lindamente falados e discutidos com a participação de Diana Corso, autora do ensaio "Sem medo de Virgínia Woolf".

Nesse mosaico composto por simbolismos e relações, inúmeras questões podem ser levantadas e todas dignas de horas a serem ocupadas por elas, mas, ontem, senti como que ainda mais tocada pela palavra do feminino tão bem atribuída à escrita de Virgínia Woolf  e representada, também, nas obras já mencionadas. A ilusão da presença, a ausência, o lugar de não ser, o cair dentro de si, o vazio, a constância, aquilo que as mulheres sabem... Esse foi o fio condutor tão bem desenhado por Diana Corso e que fez com que o desenho das letras que habitam na minha pele "Sempre as horas", ganhasse ainda mais sentido. Talvez porque ser mulher tenha a ver com sentir a passagem do tempo no corpo, estar na pele do tempo, no pêndulo que dança entre o que morre e o que renasce.

Foi uma mulher que me fez rever "As Horas"; despretensiosa, lançou-me um grito: - Virgínia Woolf! Eu me virei meio aturdida. Estava no meio dos patos tentando fotografá-los. Na hora não entendi... Mas houve algo de certeiro ali, como se ela tivesse nomeado algo muito interno e profundo, algo meu. Quando o assisti novamente, a vida não pôde continuar a mesma. Eu estava ali, naquelas mulheres. Virgínia, Laura, Clarissa... Reviradas em mim.

Na discussão realizada no seminário, as palavras e reflexões me  ajudaram a localizar sentimentos, a compreender sensações difusas, esse lugar para onde a mulher vai e precisa ir, o qual foi traduzido como a queda que fazemos em nós mesmas, no "âmago escuro" que encontramos quando nos desencontramos de nós. Daí a experiência de vida e morte, dos ciclos, daquilo que não cessa de bater, a insistência da vida e a retirada para o descanso de não ser... Só um pouquinho, não ser. Quase que como um apelo, um apelo puramente feminino, porque reconhecemos esse lugar. Somos os olhos do cotidiano, do gesto, do sons, do que se repete, do que sussurra... Tic-tac, tic-tac... Fazemos casa no vazio, pois o conhecemos.

Nas cenas desse filme da vida, o bolo que não sai, as mãos que tremem ao quebrar os ovos, a fuga para a estação de trem, a inaptidão para suportar o prático, o prático que chama para o papel a desempenhar, para a imagem, para a certeza fálica. Contemplar o pássaro morto, andar pelo meio dos patos, passar a chave na porta e escrever, desaparecer... Incompreensões erigidas pelos ponteiros entorpecidos. Laura Brown desiste de se matar quando percebe que é possível morrer. A desistência se faz possibilidade, e possibilidade de vida.  A desistência é a estrada ao lado...

Sempre me senti capturada pelo movimento do pêndulo no relógio e principalmente pelo barulho silencioso das horas que passam no minúsculo, no menor movimento, naquilo que cessa para que o resto continue; as pequenas (ou grandes) quedas no vazio cheio de vida, onde a morte e a vida se tocam. Elas, duas mulheres! Talvez esteja aí uma possibilidade de olhar para as cenas de beijos entre as mulheres das horas: Virgínia e a irmã Vanessa, Laura e sua amiga Kitty, Clarissa e sua companheira Sally... O beijo, aqui, nada tem a ver com orientação sexual ou erotização; para mim se trata de um apelo, um apelo a compartilhar desse lugar íntimo que não pode ser traduzido, uma tentativa de dividir a sensibilidade solitária, aquela da queda, que pode produzir um encontro. Um chamamento ao sentir. Um apelo à verdade. Um encontro com o tempo.

S. Chaves





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