(Doisneau)
I
Vida da minha alma:
Recaminhei casas e
paisagens
Buscando-me a mim, minha
tua cara.
Recaminhei os escombros
da tarde
Folhas enegrecidas,
gomos, cascas
Papéis de terra e tinta
sob as árvores
Nichos onde nos
confessamos, praças
Revi os cães. Não os
mesmos. Outros
De igual destino,
loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor,
atravessando
Cinzas e paredões, o
percurso da vida.
Busquei a luz e o amor.
Humana, atenta
Como quem busca a boca
nos confins da sede.
Recaminhei as nossas
construções, tijolos
Pás, a areia dos dias
E tudo que encontrei te
digo agora:
Um outro alguém sem
cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas
armadilhas.
II
Que dor desses
calendários
Sumidiços, fatos, datas
O tempo envolto em visgo
Minha cara buscando
Teu rosto reversivo.
Que dor no branco e
negro
Desses negativos
Lisura congelada do
papel
Fatos roídos
E teus dedos buscando
A carnação da vida.
Que dor de abraços
Que dor de transparência
E gestos nulos
Derretidos retratos
Fotos fitas
Que rolo sinistroso
Nas gavetas.
Que gosto esse do Tempo
De estancar o jorro de
umas vidas.
III
Se a tua vida se
estender
Mais do que a minha
Lembra-te, meu
ódio-amor,
Das cores que vivíamos
Quando o tempo do amor
nos envolvia.
Do ouro. Do vermelho das
carícias.
Das tintas de um ciúme
antigo
Derramado
Sobre o meu corpo
suspeito de conquistas.
Do castanho de luz do
teu olhar
Sobre o dorso das aves.
Daquelas árvores:
Estrias de um
verde-cinza que tocávamos.
E folhas da cor das
tempestades
contornando o espaço
De dor e afastamento.
Tempo turquesa e prata
Meu ódio-amor, senhor da
minha vida.
Lembra-te de nós. Em
azul. Na luz da caridade.
(Hilda Hilst - Cantares de perda e predileção)
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