16 de agosto de 2018

Desejo em preto e branco



(Blue Jay - 2016)


Todos queremos alguém que ainda esteja lá... Essa frase me apareceu, talvez como uma resposta ou tentativa de meus pensamentos em estacionar por algum momento num ponto estabilizador. Uma infinidade de sensações parecem caber nela, nesse lá, nesse alguém, nesse ainda, que indica que algo pode proteger-se do tempo.

No filme "Blue Jay" (2016), um casal que viveu uma história no passado se encontra casualmente após 20 anos. Jim (Mark Duplass) e Amanda (Sarah Paulson) passam um dia e uma noite juntos como se fossem capturados por um tempo que se foi e que retorna em forma de momentos belamente compartilhados entre os dois.

Jim "ainda está lá", está de mudança para a sua antiga casa onde passou a adolescência, mas é como se nunca tivesse partido; depois veremos que talvez nunca tenha saído psiquicamente. Roupas, fitas cassetes, objetos, livros, tudo ainda ocupa os mesmos lugares, tudo convida a esse passado que passa a ser revisitado quando Amanda pede para ir até à casa. 

Há entre eles aquele tipo de intimidade - "uma intimidade religiosa", diria Barthes, imune à passagem do tempo, feita de passagem, passagem fácil e certeira ao outro. Assim, esse encontro se faz de um percorrer por diferentes momentos de suas vidas. Ele começa feito de palavras, no princípio cuidadosamente colocadas, como um jogo de xadrez ainda muito longe do xeque-mate. Após, passa a uma conversa que ganha movimento, ganha caminhadas, e chega à casa de Jim, onde já há uma decisão tomada em estar ali; o encontro se despede do que antes poderia ser chamado de casual.

O que não tem nada de casual é o fato de que o filme é em preto e branco, uma ironia se pensarmos essas situações onde o passado se faz presente, misturando a paleta de cores; mas o preto e branco representa e reforça um ponto que se relaciona com o filme como um todo: a ficção; não a ficção do filme em si, mas a ficção necessária da travessia da vida, a que faz possível transitar pelos caminhos e ter o que deixar e o que levar junto. Nossas histórias são ficções reeditadas a cada vez que as contamos, recordamos, sonhamos... As colocamos na mala para seguir rumo à outras ficções chamadas por nós de futuro. 

Jim e Amanda conseguem incluir uma preciosidade capaz de fazerem suportar o peso daquele encontro, salvando-o por algum instante do defrontar-se assustador com a tão conhecida neurose dos homens "aquilo que poderia ter sido". Eles conseguem brincar com esse desconhecido futuro que não virou passado, encenando como seriam suas vidas de casados, casando-se um pouco, deixando-se levar pela dança de uma música que já não toca mais, e que por isso pode ser tocada ali, protegendo-os de um impulso que os transbordaria. A ficção por um fio.

Mas, se com o tempo não se brinca, imagina com aquilo que ele guarda. Chega a hora de acertar as contas, chega a hora de chorar, porque nesse Romeu e Julieta não temos cotovia, e como em Verona, na Califórnia também amanhece... Se o dia nasce em preto e branco, já não traz o mesmo charme do início da noite. É o dia seguinte e ponteiros se realinham. 

O casal volta ao estacionamento onde ficaram seus carros e a estrada suspensa por algumas horas. É preciso partir... E não seria a capacidade de ficcionar o que nos torna corajosos na hora da partida e da chegada? 

Talvez a ideia de que alguém ainda esteja ou fique lá nos leve tanto ao passado quanto ao futuro; esse alguém que pode ter tantos rostos e ser tantos cenários... A mãe, a casa, o amor, a infância, o sonho não realizado, ou seja, os nossos desejos... Que eles ainda e sempre estejam lá, para que aqui possamos dançar as nossas músicas como em um filme em preto e branco, pois não há nada lá que já não more conosco.

S. Chaves

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