Há certos lugares que batizados por
experiências e lembranças ganham status de relicário sentimental. São aqueles
que serviram de cenário real ou imaginário aos momentos marcantes de nossa
vida, ainda que essas marcas só possam vir a ser muito tempo depois. Posso
citar alguns que muito rapidamente cumprem essa função de tele transporte: os
pátios ou quintais que acolheram a infância, o armazém do outro lado da rua, a
calçada de correr, as esquinas que desde sempre já apontavam que há outros rumos.
Lugares assim remetem a um pedaço de tempo que se separou dos demais, como um
velho, que ao tomar-se de um imperativo audacioso negou-se a ser passagem e à
beira de qualquer estrada ali ficou.
Em um armazém, por exemplo, encontra-se
matéria prima, alimento, objetos dos mais variados, dispostos de forma a
capturar o olhar nas mais diversas direções. Trata-se de um portal do tempo,
mas do tempo que sempre esteve ali. É possível que nos encontremos com nossas
histórias, minúcias que nos levam até momentos muito pontuais como o abrir de um
papel de bala na calçada, com pés metidos em patins de quatro rodas, sentindo o
suor no rosto e o calor das bochechas brincantes da infância. São as horas que
nos encontram e contam também do seu passado. As horas que ora eram outras, e que
inversas ao nosso ritmo de envelhecer, quando novas são demoradas e de moradas.
Esses lugares onde moram as horas são
no mínimo curiosos, pois hora que passa não mora, vai embora, mas hora que fica
só pode ser aquela que se foi... Tudo o que guarda as horas guarda o que resta
delas, histórias que podem ser contadas e as que o próprio tempo silencia, ainda
há as que se repetem e faz com que as horas virem velhas visitas, tornando
possível reviver algum sentimento precioso que ainda nos acalenta. Para cada
hora que envelhece, nos despedimos um pouco de nós, vamos perdendo, deixando, seguindo,
e ora ou outra precisamos entrar pela porta do armazém ou espiar na esquina
para reconhecermos nossa imagem nos espelhos da memória.
Mas essas senhoras fugidias adoram se
mudar, e há outro lar de ponteiros que me causa encantamento... Trata-se daqueles
relógios das estações de trem, imponentes e centrais, quase deuses a autorizar
as partidas e chegadas. Se o sol tivesse um primo-irmão seria algo como esses
moços formosos, que assim como o seu caloroso parente que alterna o tempo quase
sem sair do lugar, se põem logo acima dos trilhos para ver deslizar o tempo que
corre. Há também as estações dos relógios, florescendo ou congelando as
horas que não deixam de insistir seja lá qual for o tempo ali fora. E há as
horas em mim, ainda crianças, convidam-me a brincar de cabra cega... Não consigo pegá-las,
tampouco vê-las; por isso vou ao encontro desses lugares que se renovam com
antigas lembranças: cenas, sons, vento e cheiros, pois se é das horas, elas se
encarregam de dizer de novo o que já foi dito, com todo o ineditismo que só o
milagre dos ponteiros pode nos dar.
Frente ao pêndulo, esse maestro do
tempo, eu brinco de eternidade... Na pele tatuada há antes das horas um
“Sempre”, para não esquecer que no fim, é tudo o que temos, e tudo o que vive a
nos faltar... Uma eternidade que só se faz na passagem incessante do que vive a
nos escapar. Aceitamos esse convite quando viemos ao mundo, dançar com as horas
e confundirmo-nos sobre quem é que conduz essa dança. Por isso inventamos uma
casa para elas, por isso escrevemos na pele “sempre”, esse sempre que também
desbota; por isso mantemos alguma coisa, um fio, um resto, à maneira de um
suspiro, para que não se desate todas as nossas ilusões, e para que não se
parta a nossa estrada.
Na rua de correr, no pátio de sonhar,
no armazém das histórias, há sempre pegadas minhas; desenho que forma caminho,
com-passo que resiste aos desencontros e intempéries das histórias que se conta
pelo avesso. Avesso das horas, que descansam ali. Meu encontro com o tempo
passa por lá, como aqueles lugares onde se bebe um copo d’água depois de uma
longa jornada, ou aqueles raros momentos onde parece possível escutar uma
espécie de sussurro do mundo, inaudível aos ouvidos pretensiosos. É o deitar na
grama num dia de sol, é o pó da vida visível apenas por uma fresta... É uma
porta aberta, que quando bate me deixa do lado de fora a perguntar “Que horas
somos?”
S. Chaves
S. Chaves
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