25 de novembro de 2018

Palavra confessa







"Mas a palavra é desde sempre insuficiente para abarcar a vida e aquele que escreve se condena ao fracasso. Se esta é a maldição, é também a beleza pungente dessa busca."

(Eliane Brum)


Uma montanha russa de silêncios e "falação", geralmente assim são os dias em que fico sozinha com minhas coisas e meus bichos... A bem da verdade o silêncio predomina, mas como se houvesse um acordo secreto a dispensar minha opinião, passam-se muitos minutos e horas de alternância entre uma dispersão propícia  e a "falação" interna, a segunda um tanto mais intensa que a primeira. Não por acaso terminei de ler o livro "Meus Desacontecimentos" de Eliane Brum, o qual à maneira de Clarice, me deixou com "os desacontecimentos nas mãos". Minha pergunta: "Que faço eu, depois desse livro?" Nem vou forçar as palavras a darem conta dos inúmeros sentimentos e cataclismas suportados em meu peito por conta de sua narrativa, mas em um dia no qual as palavras estavam a me rondar com tanta insistência, fechar essa leitura e continuar vivendo, só com mais palavras; dessa vez as minhas, ainda que muitas ali eram minhas também.

Em um livro que se forja como um raio-x a escancarar as entranhas de uma vida, que desnuda e ainda tira qualquer pele protetora, pude cair um pouco com a autora, em queda livre mesmo, nos subterrâneos de um universo chamado profundidade. Durante o mergulho na vida de Eliane e na sua constituição enquanto sujeito desejante, sempre a cambalear, percebi que isso que é tocante ao profundo só se dá porque vai da morte à vida e vice-versa. É preciso ter uma árvore dentro de si para chegar perto do que seja viver, seja lá de que espécie for. Foi então que comecei a pensar em uma série de coisas relacionadas aos significantes desse sábado, que como a própria autora cita, é um dia de ilusão. Palavra, falação, silêncio, árvore e, ainda, influenciada pela escavação genealógica da autora, família. Uma certa linha foi costurando esses significantes e alinhavando alguns sentidos.

Aos 40 já temos experiências suficientes e tempo percorrido para ir juntando fragmentos em relação a nossa história. Sou uma pessoa que fala muito, e eu adoro falar, posso falar horas quando dos bons encontros, assim como adoro escutar, e posso escutar por um bom tempo, quando dos bons encontros. Palavra é oxigênio, preciso dela, e preciso todos os dias... Mas trago comigo uma aura curiosa, uma sensação solitária que diz da dinâmica dos endereçamentos, como se as palavras não chegassem lá onde elas precisam ir. As palavras chegam?

Quando criança escutava que muita coisa não poderia se falar aos outros, esses outros fantasmagóricos sempre a rondar as nossas vidas perfeitas. "Não precisa falar", "Não conta nada", "Se falar estraga", e assim se cresce acreditando no poder negativo desse outro, independente do que nós mesmos fazemos com a nossa vida, pois que difícil é lidar com a crueza de que somos os únicos responsáveis pelo nosso caminho. Mas ainda pequena fui uma atrapalhada com essa história, e assim até hoje, pois não compreendia, tampouco concordava com essa lógica. Quando eu estava muito feliz, eu queria falar, e falava, e quando eu estava muito triste, eu precisava falar, e falava. E se teve algo que eu achei graça por um tempo e hoje acho triste, é essa pobreza subjetiva que entende o silêncio da fragilidade, por exemplo, como sinônimo de fortaleza. Para mim, há uma clara inversão nisso tudo. Aliás, nossa própria história é repleta de contradições. Somos cheios de dúvidas, falhamos todos os dias para acertar um pouco todos os dias. Não temos como ser quem somos sem nossos avessos. Temos ossos que quebram, carne que pulsa e cansa, um coração que pode (e vai) parar de bater. Somos e não somos tantas coisas... 

Obviamente que não falo do silêncio que conversa com o tempo, que é o próprio tempo em uma de suas tantas facetas. Silêncio sem o qual não há palavra. Meu incômodo é com o silêncio programado para conter o espontâneo, a vida que se derrama; com o silêncio perverso quando se sabe que, às vezes, tudo o que se precisa é de uma palavra que ligue, que acenda alguma chama ou que minimize o incêndio, que reconheça o outro e a sua voz. 

Fiquei imaginando a árvore genealógica da minha família desenhada como histórias contadas, e fico pensando que faltam muitos daqueles parágrafos essenciais, que poderiam desfazer as aparências, algumas já tão falidas, e diminuir lacunas. A palavra abafada vai apodrecendo dentro da gente, não dá frutos. Lembro que quando criança pensava que se engolisse a semente de alguma fruta nasceria uma árvore na barriga. Mesmo diante de uma cultura narcísica, produtora de um silêncio que tinha função de tornar algo mais especial do que realmente era, tenho certeza de que nasceu uma árvore contraventora dentro de mim; uma árvore de palavras e palavras, bem enraizada no não sabido, pois que ele não para de fazer vento aos galhos da minha história. Vento que deixa cair e vive a esparramar as folhas/letras dessa árvore que recebe, não sem surpresa, todas as estações. É preciso falar na doença, na decepção, na alegria genuína, no desamparo o qual ninguém passa incólume. É preciso encontrar as histórias, transmitir o vivido, e é preciso confiar. Nossa fragilidade zomba de nós, ela fica sentada acima da nossa cabeça abanando aos outros quanto mais nos escondemos em nossos ideais cristalizados - fruta geneticamente modificada. Penso que perdemos de nos fortalecer na palavra confessa, tão poderosa em sua habilidade de criar cumplicidade.

Acho que já fiz a curva que me dá certo distanciamento dos imperativos sussurrados em voz baixa na infância, ao menos no que diz respeito à tentativa de afirmar aquilo que é condição de vida, que é rastro do desejo. Persigo a palavra, em mim e no outro, me entrego a ela, ainda que alguns silêncios me façam morrer um pouco. Mas, até eles viram palavra, palavra nutrida pela insistência do desejo que as move. Palavra gestada, barriga florida, raiz que procura seu próprio alimento, mas que assume sua sede e sua fome, porque viva.

S. Chaves












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