28 de novembro de 2018

O giro do desejo



Fui até lá para me despedir, ou ao menos falar sobre esse fim que vinha se aproximando sem muito contorno, como a maioria dos fins... Entrei, mas antes de me sentar na poltrona olhei para a janela e reconheci a imagem que eu contemplava deitada no divã, há muito tempo atrás. Sempre a via, mas esse olhar de lembrança, que durou dois segundos, por algum motivo, reaconteceu. 

Sentei. Estava nervosa, com as mãos frias e o coração batendo forte. É muito tempo para caber dentro de uma frase.


Um pouco de silêncio... E coragem.


- Hoje eu vim para falar da minha análise.



Do outro lado, uma expressão de quem consente.



Começo, então, a dizer que não é de hoje que estou com a sensação de que algo não vai bem, lembro outras situações em que tentei colocar sobre isso de formas diferentes, e digo que, agora, acho que acabou. 



Há uma solidão. Me sinto só, ali. 

Mais silêncio... E gosto amargo na boca. 

Sigo...

- Não consigo reconhecer as pistas de que estou sendo escutada. Muitas vezes tenho a sensação de que estás cansado, e me dou conta de que, talvez, a expressão que mais uso aqui é "estou cansada". Não estamos, nós dois, cansados? 

Acrescento que tanto tempo indo ali e nunca olhei seus livros, nunca briguei com ele, nunca um disparate...

Ele, com calma, diz que não está em uma posição de decidir nada, mas que não poderia ser displicente com o que lhe ocorre; e me pergunta se não seria o momento de voltar para o divã, pois que eu estava trazendo coisas muito minhas.

Entre me despedir e ir para o divã há praticamente um movimento de 360 graus. E minha cabeça, nesse momento, faz essa volta.

Começa uma extensa conversa, cuidadosa, um fluxo associativo com pausas e escuta, uma escuta que me leva a enxergar...

Falo do meu vazio esburacado, da sensação de sair porta afora carregando os pedaços da minha vida nos braços, como quem leva uma pilha de roupas amassadas. Falo dos anos, desses anos todos em que vou ali toda a semana, e enumero alguns capítulos da minha história: descasei, apaixonei, me formei, arranjei emprego, mudei de emprego, aprendi a dirigir, saí do país, cheguei aos 40, e tantas coisas mais...

A gente sorri. É uma vida, eu digo.

Coloco que devo passar uma falsa sensação de segurança às pessoas, pois me considero uma pessoa articulada, e lembro que uma vez alguém me disse que talvez fosse normal as pessoas acharem que eu não preciso de nada. 

Começo a chorar...

- Eu preciso de ajuda! Aqui não é como lá fora, aqui sou como uma criança. 

Me despedaço...

Ele diz:

- Nunca foste tão clara assim sobre isso.

Acho que ele tem razão, o máximo que eu dizia era que às vezes precisava que ele "desenhasse" as coisas para mim, mas não era isso, eu precisava de palavra, eu precisava de... 

- Direção! É isso! Preciso de uma direção.

E reforço: - Essa é a palavra.

Segue algumas trocas, e algumas devoluções um tanto tardias para mim, mas nascidas ali, naquele momento. Coisas que eu precisava ouvir em mim, com a voz dele, pois na minha voz ainda teimava outro idioma, hieróglifos, letra sem som, ou palavra muito bem edificada, dessas que viram muros... 

Me devolve o que é meu. Preciso passar as peças da pilha de roupas amassadas, mas não todas, só as que me cabem.

Outro giro, e voltamos ao início.

Ele pergunta:

- Por que os livros?

Eu respondo:

- Porque é uma das coisas mais bonitas que se pode compartilhar. 

E agora me ocorre: Porque tão cheios de palavras? 

Falamos de criatividade, de formação, do espaço, da relação, do tempo... Da minha demora, mas, também, desse tempo que um dia se faz clarão, olhar, presença. E me dou conta de como as coisas (de)moram em mim. Tudo isso no fio do desejo, que ainda está ali. 

E eis que o inconsciente se convida ao centro da sala.

- O que é aquele objeto, na mesinha, que eu sempre vejo de longe mas não sei o que é?

Ele se vira.

- Uma bússola. 

Pega-a e me entrega.

E então me diz duas frases sobre a origem dela.

Seguro a mesma com cuidado, surpresa e encantamento.

- Que linda! 

Fico olhando o ponteiro se mexendo bem devagar, apontando para o norte... 

Suspensão...

Entrego de volta. 

Era um objeto cheio de história. Senti como se o meu olhar o tocasse mais que as mãos.

Ele diz: 

- Estás cansada.

É verdade! Mas, agora nem tanto, penso eu...

Avistei um norte. Peguei a direção com as duas mãos. Acho que eu nunca havia visto o simbólico tão de perto. E começo a falar de um lugar novo, referindo-me ao meu atual local de trabalho. Não sabia bem o que dizer, pois ainda não tinha nome para ele...

- Volta na semana que vem para falar desse lugar novo. 

A essa altura eu já havia chegado ali.

Agora já sei, que se eu me perder no caminho, a palavra me leva.



S. Chaves











Um comentário: