24 de janeiro de 2020

Como Luz





Ainda estás aqui, minha amiga. É de muito perto que falo contigo, pois a ideia de tua partida ainda é tão irônica, tão incompreensível, que não foi possível ainda que eu mesma me partisse. Tu já não estavas aqui há tantos dias, e dentro da minha segurança, ainda te via e te imaginava admirando o vento e as ondas da praia que pude dividir contigo; a praia da minha infância, a praia da tua adultez; ambas entendíamos das suas águas melancólicas. Eu tinha saudade e logo te imaginava por lá, na tua casa, com os teus bichos, a vista da sacada, Iemanjá... E meio que sorrio só de pensar no teu jeito de passar a mão no cabelo, com ares de misticismos, mas muito bem fundamentados, diga-se de passagem. Sem falar nas frases precisas, que sempre acertavam algum ponto meu. Se teve alguém que me arrancou respeito e leveza ao mesmo tempo, foste tu, e que triste é escrever o que não pôde ser dito, mas tenho certeza de que sentias a minha admiração, transbordava na minha atenção minuciosa que naturalmente fluía a cada palavra tua. Não pude me despedir, o único laço em comum entre nós não pôde me falar da tua partida, também não acreditou, suponho, estava por demais dolorida; e então num dia qualquer eu te olho através dessas ilusões todas, as redes, disfarçadas de contato, e ali, naquele momento, tu já eras memória em uma fotografia. A risada espontânea, os trejeitos, os batimentos, o olhar... Tudo se fora, assim, sem lógica alguma, sem probabilidade, sem anúncio ou pistas... Quase que como uma onda que de tanto te namorar lá de longe, veio mais forte e te levou. Eu fiquei aqui sem entender nada, sem explicações, e ainda não acreditando, porque, minha querida amiga, eu ainda não acredito. Em dias de sol, quando ando pelas ruas de Porto, quase que pego meu celular para perguntar se estás por lá, ou se virás no próximo feriado, e quase que me preocupo mais uma vez em pensar em algum lugar diferente quando das tuas vindas, para arrebatar a tua sede de vida, e que ansiedade me causava essa tarefa; agora eu entendo... Pois nada cabia para o teu tamanho de mundo, tão imenso, tão desejoso, tão perspicaz. Agora mesmo sou capaz de te escutar dizendo: É mesmo? Tu pensas isso? Com aquele ar de perplexidade, um sorriso meio tímido e desconcertado, e com aquele olhar de quem decifra alguma coisa sutil... Depois a risada e a ajeitada no cabelo, que era quase como um voltar a si. O que pensar sobre a amizade, se quando consigo pegá-la em minhas mãos ela já se foi? E por que confiei tanto no tempo, esse ilusionista, que fez parecer que ainda havia tanto? Que confiança absurda depositamos no futuro. Não à toa em nosso último diálogo eu te escrevo que te mandaria um áudio depois, pois estava começando a dirigir... O áudio não foi, pois sabe-se para onde continuei dirigindo e o depois é sempre tão seguro. Mas, dessa vez o tempo dirigiu mais veloz que eu, e houve essa colisão, a quebra disso que pude tocar um pouco... Gostar tanto de uma amiga, e melhor, respeitar tanto uma pessoa, naquilo que ela é. Eu nunca quis nada de diferente daquilo que a gente pôde ser. Mas hoje eu queria teu coração batendo. Como pode um coração como o teu parar de bater? Será que porque batia tão intenso? Quem explica isso? Um coração com gentes, com animais, com beleza, arte, família, amigos, planos, viagens, movimento, delicadeza... Às vezes acho que corações assim ficam cheios demais e vão se alargando, se alargando... E puf... Vazio... Procura... Tristeza... Não entender, não entender...
Estávamos à mesa de um café, acho que nosso último café... Tu me contavas perplexa sobre uma conhecida que de repente teve um ataque cardíaco e se foi... Assim, sem aviso, a vida acontecendo... Eu lembro, querida, do quanto ficaste abalada com isso, tu disseste: "da nossa idade, dá para acreditar?" Eu te respondo: não dá! Isso não sai da minha cabeça... E depois te foste assim... Foste minha confidente para os assuntos mais delicados e para os mais repetitivos, foste o olhar que olha e compreende, e se não compreendia, continuava ali, a olhar e a escutar. Tu sabias de um país chamado escuta, em nossos encontros, podíamos habitá-lo, esse país tão longe, tão raro, tão pouco habitado. Obrigada por ter me chamado para a tua vida, por ter me ensinado tanta coisa, por conseguir ver aquilo que em mim não é tão fácil de se levar, e transformar isso em leveza. Obrigada por me fazer crer na amizade e na troca, Débora Luz. Tu continuas na minha Porto Alegre, nos meus cafés, nas minhas palavras, nas minhas sensações. Tu continuarás, querida, como Luz que és, iluminando um pouco do que se passa por aqui. Perdoa pela forma que me coube despedir-me de ti. Acabo aqui o que não acaba.

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