7 de dezembro de 2016

Viva - a humanidade





Existe algo em mim como que uma sede implacável por coisas que me possam tocar profundamente a alma e mobilizar os sentidos. Dentro disso está a fruição de uma obra de arte, o cinema, a música, a poesia, os gestos... Coisas que dizem da nossa humanidade e potência criativa. Ontem tive uma dessas catarses que nos levam a outro nível do sentir, um “golpe emocional”, como foi muito bem traduzido pela crítica. Emoção essa causada pela história do personagem Jesus e seus companheiros de vida – o filme,” Viva” (2015) - do diretor Paddy Breathnach.

 A história se passa em Havana / Cuba, cujo cenário explicita uma decadência triste, e que consegue se tornar bela ao nos aproximarmos das vidas que ali se revelam e desvelam um misto de força e fragilidade, o que nos arrebata enquanto espectadores. Jesus e sua beleza, cujo semblante denuncia o desamparo, é um menino jovem que busca algo para si – “Eu quero algo para mim”, e que seja intenso, diz ele. Desejo e pedido que se colocam para além da condição insana da miserabilidade, da violência do cotidiano que se refaz a cada dia, sem perspectivas, desenhado apenas pela linearidade daqueles que vivem com muito pouco. Porém, esse “muito pouco” vai se esvaziando à medida que a gentileza, a humildade e a afetividade de Jesus permitem a ele suportar a dureza implacável que se apresenta ao seu redor: o pai, ex lutador de boxe, cuja bebida lhe é inseparável, a falta real do alimento, a casa que lhe é roubada (invadida por esse pai, figura amedrontadora que chega sem avisar), o sonho adiado de se tornar uma artista, a escolha sexual, a amizade interesseira, a prostituição, e mais uma série de situações e adjetivos que, a primeira vista, configuram um quebra-cabeça há muito conhecido de todos nós. 

A beleza vai ganhando forma quando essas peças vão deixando de se encaixar e repetir os desenhos já previstos; quando a gentileza e humanidade, tão delicadas (assim eu as vi), vai tecendo uma cumplicidade própria daqueles que sentem na pele a dor do outro; uma comunhão de dores, mas também de sonhos. Quando Jesus corajosamente banca estar ao lado do pai, movido pela presença deste que até então era somente ausência, quando espantosamente enfrenta aquilo que lhe cabe, acontece uma ruptura nessa relação, que antes estava marcada pelo medo, pela estranheza e pela dominação daquele que era, ou ao menos parecia, “o mais forte”. Jesus surpreende, deixando o espectador quase que sem compreender.  Ele decide cuidar, perdoar, decide também que pode haver amor. 


Já a personagem denominada não por acaso de “Mama” – uma drag queen intensa na sua doçura e empatia, e dona da casa de shows da esquina – é a figura de amparo e referência para Jesus. Além de estender a mão ao garoto, ensina com a palavra e o gesto, que ele não está só. Sem tantos recursos no campo do vocabulário, que possam dar conta do que o olho viu, me torno limitada ao tentar traduzir os afetos que ali vão se encontrando, cada um a seu modo, dentro do que é possível, como uma linha que vai ligando aquilo de mais humano que cada um pode lançar mão diante do caos. Além da trilha sonora esmagadoramente bonita, da dramaticidade, da força quase que fugidia de cada personagem, a minúscula potência do sonho, do amor e da arte, palpita nas brechas que lhe é concedida no movimento daquelas vidas e daqueles encontros. 

Viva, além de um nome, é o imperativo que parece sustentar cada momento dessa história que me tornou tão pequena diante de sua grandeza; imperativo que alicerça cada passo dessas personagens, se pondo ao lado da dor, para que apesar dela resista o desejo de sonhar, e que salva.

Sheila Chaves



Um comentário:

Bruna Ghiorzi disse...

Adorei a tua leitura do filme, me inspirou para assistir!! Escreve mais Sheilinha!!