11 de fevereiro de 2019

A arca de Noé





Na sala de cinema da última sessão de domingo, poucas pessoas reunidas para assistir "Climax", último filme do diretor Gaspar Noé. Um clima de expectativa diferente e a sensação de que parecíamos nos reconhecer frente à experiência que estava por vir parecia se presentificar no ambiente.

O filme começa com uma mulher que se arrasta pela neve, deixando rastros de sangue, cena esta que aparentemente parece deslocada das sequências seguintes. Após, somos levados ao salão de uma casa ao som de uma música eletrônica que chega para não mais nos abandonar. Na primeira sequência do filme a coreografia apresentada pelos bailarinos é contagiante, intensa e hipnotizante. As cores quentes, predominando o vermelho, vão dar o tom do filme. O ritmo, a vivacidade e a sintonia entre eles faz com que não se passe outra coisa que não a vontade de estar lá, dançando junto. 

Logo, as características das personagens vão aparecendo a partir dos diálogos entre elas, comentários sobre os colegas do grupo, “fofocas”, desejos, inferências, e aqui temos o começo daquilo que mais tarde perderá qualquer contorno. A essa altura a bebida já está rolando e o que cada um tem como o seu melhor e o seu pior vai ganhando cada vez mais palco na dança das relações. 

Uma segunda dança começa, onde os bailarinos em círculo parecem ainda dar continência às performances, como que numa espécie de ritual. Um a um, ao se lançar no centro da roda, exibe suas habilidades de forma ainda mais extravagante do que a primeira vez. A cena filmada de cima produz um efeito de captura, como se o espectador fosse do alto cair ali e se perder no frenesi. O círculo acompanha, ameaça invadir o espaço de quem dança, um contorno que é borrado o tempo todo pelo magnetismo do movimento em curso, pouco se abre e muito se fecha, e no pulsar crescente acaba em uma fusão onde os corpos se encontram e se misturam num êxtase que adverte: a partir dali, tudo pode acontecer.

Blackout! E então temos os nomes dos atores, os quais costumam aparecer na abertura ou no final dos filmes. Aqui, parecem também avisar que só agora o filme começa.  A segunda sequência se baseia nos efeitos da substância pela qual a bebida oferecida na festa (a sangria) é “batizada”. Os bailarinos não sabem o que está havendo, nem sabem que substância ingeriram. E assim os primeiros efeitos começam a se manifestar. A tensão está colocada quando o grupo passa a acusar os únicos dois integrantes que não beberam, o que faz com que os mesmos sejam eliminados da festa de forma cruel e violenta. 

Violência, agressividade, animalidade, sexo, incesto, tudo isso potencializado a uma medida desconhecida regem as próximas cenas do filme que mais parece um pesadelo sem fim. Uma bola na garganta vai se formando. A perda de controle parece atingir dimensões as quais começamos a nos perguntar como tudo aquilo pode acabar, ou melhor, se acabará. A sensação é quase real, você está lá, naquela casa no meio do nada, sozinha com seus demônios, em meio a gritos lancinantes e choros desesperados; todos estão sob efeito, o que  culmina em uma aberração caótica que só o ser humano é capaz de atingir.

Algumas pessoas me perguntaram sobre o filme. Não sei se recomendo, talvez não seja algo a ser recomendado. O que posso dizer é que se trata de um filme forte e que vai mexer com suas entranhas. Agora que passou começo a achá-lo fantástico, um misto de pavor e fascínio. Há muitas coisas que podem ganhar relevo, mas destaco a forma como todas as personagens, desde o início, dão a ver sobre traços de suas personalidades. Aquilo que cada um tem sob controle, mas que vive a escapar, é o que irrompe sem freio escancarando isso que se esconde atrás do véu do altruísmo e da "bondade" humana. Tudo já estava lá, ganhando corpo. 

Se no início cada um pôde mostrar sua ousadia através da dança, é porque havia uma coreografia que organizava. Não poderíamos comparar o que rege a nossa “civilidade” a uma coreografia? Há começo, meio e fim, hora de entrar, hora de se retirar, o solo, o corpo de baile, o ritmo, o figurino; aspectos que dão continência: real, simbólico e imaginário estão amarrados. 

Quando a coreografia se perde e o corpo apenas responde a um estímulo alucinógeno temos uma dança psicótica e desenfreada, que por mais que possa nos parecer fascinante, mostra que esse clímax, o qual "alguns" de nós perseguem obstinadamente, não nos leva tão longe assim. Não será mais sutil do que imaginamos esse limite que nos coloca frente a nossa loucura? Se a nossa fascinação por atingir um estado maior não mascarasse a nossa pequenez, talvez pudéssemos reconhecer com mais clareza que nossa fantasia em atingir um ponto máximo, um êxtase que está sempre além, é como que um passo curto que nos separa da morte. Como já dizia  um poeta, a morte diz apenas Sim. 

"Climax" fica colado em seus pensamentos, é daquelas produções que não se trata de gostar ou não gostar, deixa uma marca e produz uma experiência singular ainda que te faça fechar os olhos em alguns momentos e os deixe bem abertos em outros. Ensurdecedor, enlouquecedor, animalesco. Na arca de Gaspar Noé o dilúvio está dentro, e os animais somos nós.


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